Banana Fish é um anime LGBTQ sem pegação, é TUDO e tem em streaming

O nome não é estranho? Bom, Banana Fish também está no título de um conto superfamoso da literatura norte-americana, e de um dos meus autores preferidos. Um Dia Ideal para os Peixes-Banana é um conto de J. D. Salinger que faz parte da coletânea Nove Estórias e traz um dos personagens da família Glass, Seymour Glass (a família Glass aparece em grande parte das obras de Salinger). A boa notícia é que Um Dia Ideal para os Peixes-Banana está disponível online no site da revista Bula - leia, mas com cautela, é um conto aparentemente simples mas trata-se de uma armadilha. E é bom ler já antes de continuar, porque mais para frente vou dar spoilers dele, OK?

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Na verdade recomendo que você leia o livro inteiro

Essa é a mais nova edição - o Estórias virou Histórias

O conto saiu pela primeira vez na revista New Yorker em 1948. O trauma pós-guerra e decorrentes problemas na saúde mental são retratados na figura de Seymour. Salinger aproveita as figuras recorrentes em seu trabalho da família Glass para mostrar a complexidade do ser humano e as decorrências de fatos contemporâneos nas nossas vidas. Ele também é autor do profundo e emblemático O Apanhador no Campo de Centeio - se você não leu, recomendo parar tudo o que está fazendo. Alguns dirão que é uma obra voltada para adolescentes, mas não espere por Jogos Vorazes. O negócio é tenso e mexe com a gente. Já ouvi falar que é um dos livros preferidos do Washington Olivetto - ele tem um monte de cópia extra e dá para as pessoas, tipo evangelizando a palavra de Salinger para o povo!

E Banana Fish, o anime, também mexe com a gente.

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O anime é inspirado num mangá de mesmo nome que, disfarçadamente, foi direcionado para garotas. Não sei se você sabe mas mangás no Japão são bem divididos e segmentados em revistas que tem público cativo: o dos meninos, a das meninas etc.
Entre essas histórias para as meninas, é comum que existam as de estilo yaoi. Elas trazem casais de meninos gays com papéis bem definidos de ativo e passivo, são românticas e ao mesmo tempo possuem cenas estilizadas de estupro (sim, pois é), dominação e congêneres. Geralmente essas historias são vistas como válvula de escape para leitoras que não possuem um relacionamento ou que até o possuem, mas são infelizes nele e gostam de sonhar com algo mais idealizado (e impossível de ser vivenciado por elas, já que os personagens principais são rapazes).
Os yaoi vem desde a década de 1970 e são um sucesso sedimentado. Você também pode ver isso como parte do conjunto semântico do ideal masculino mais frágil e feminilizado da Ásia hoje, contemplado, por exemplo, por ídolos do j-pop e k-pop.
(Existe outro estilo de mangá, o bara, voltado para os homossexuais, nos quais os homens são mais musculosos ou gordos, geralmente mais masculinos e maduros, e o foco dele é mais voltado ao sexo em si do que ao relacionamento, pelo menos ao meu ver. Acho que podem até haver exceções mas yaoi e bara são coisas bem diferentes, definitivamente.)

Já está complicadíssimo na sua cabeça, eu sei, mas vou complicar ainda mais: Banana Fish é um ponto fora da curva. Ao contrário da tradição dos yaoi, a história que começou a ser publicada em 1985 na revista Bessatsu Shôjo Comic não traz exatamente um casal gay que faz sexo. Os protagonistas Ash e Eiji na verdade nem transam. É algo mais platônico, apesar de existir uma tensão amorosa entre eles. Eles são gays? Há discussões sobre isso até hoje, e a própria Akimi Yoshida, autora de Banana Fish, costuma ser dúbia em suas respostas para entrevistas.

Outra grande diferença entre Banana Fish e outros é que o estupro aqui não é glamourizado: o tempo todo ele é tratado como algo negativo, perverso, um fetiche nojento. Quem o pratica na trama deve ser punido, existe uma clara criminalização. Ufa.

Não tenho certeza, mas acho que Yoshida fez tudo isso de caso pensado, para criar algo diferente. Tanto que Banana Fish virou cult e conseguiu furar a bolha dessa divisão de gênero: muitos homens héteros e cis são fãs e não tem vergonha de admiti-lo.

Mas vamos à história em si?

Eiji e Ash, o casal mais shipável <3

Eiji e Ash, o casal mais shipável <3

O mangá começa com Griffin, um soldado da Guerra do Vietnã que é usado como cobaia para uma nova droga chamada Banana Fish. Ele acaba pirando com os efeitos dela e sai matando todo mundo - um amigo, Max, é obrigado a atirar nas suas pernas deixando-o paraplégico. Ele fica catatônico.

O irmão de Griffin é Ash, um rapaz de 17 anos que parece uma versão desenhada de River Phoenix, ex-garoto de programa e atual líder de uma gangue de rua de NY que tenta desvendar o que aconteceu com o irmão. Ele acaba descobrindo ao longo da história que essa droga é pura bad trip e que a pessoa fica tão maluca que mata e depois comete suicídio.

Essas duas temáticas, a guerra militar e o suicídio, são o que ligam o mangá (e consequentemente o anime) ao conto de Salinger. Mas também acho que esse retrato de jovens com questões existenciais profundas é inspirado nos personagens salingerianos.

Griffin no flashback eterno da bad trip

Griffin no flashback eterno da bad trip

Nesse meio tempo, aparecem os japoneses Eiji e Ibe: o segundo é um fotógrafo que quer fazer uma fotorreportagem do universo das gangues juvenis de NY, e o primeiro é seu assistente. Eles acabam se envolvendo mais com Ash, Eiji constrói uma relação íntima, mas que nunca chega as vias de fato, com Ash; eles são como opostos que se completam, um rebelde e o outro conformado, um loiro americano e o outro japonês de cabelo preto, um teve uma vida relativamente feliz (na verdade com um trauma, Eiji era atleta mas não consegue mais competir) e o outro teve uma infância dolorosa que o empurrou para uma vida criminosa.

A gente descobre que quem está patrocinando os estudos dessa droga para que ela seja usada pelos militares americanos na guerra é a máfia controlada por Papa Dino Golzine. Golzine também é a cabeça de um círculo pedófilo que comercializa crianças como escravos sexuais - e do qual Ash foi vítima. Esse pessoal inclui figurões do governo.

Ou seja: Golzine é um sugar daddy nojentão

Ou seja: Golzine é um sugar daddy nojentão

O anime lançado em 2018 adapta várias coisas mas se mantém relativamente fiel à história. A maioria das diferenças é de adaptação de época: a história é atualizada para 2010, com smartphone, Guerra do Iraque no lugar de Guerra do Vietnã e outras coisinhas.

Tem um mar de coisas para falar de Banana Fish para te convencer a correr para a Amazon Prime Video e assistir, mas vou me focar em apenas algumas.

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Para começar: Banana Fish é uma série de ação. Tem briga de gangue, tem polícia, cadeia, máfia, incêndio, sequestro, reviravoltas. A sexualidade fica em segundo plano principalmente se você não prestar atenção nela. Agora, se você quiser prestar atenção, ótimo: são personagens complexos, portanto é bom ver retratos ficcionais de gente com sexualidade ambígua mas que ao mesmo tempo vivem histórias que não giram só em torno disso.

Yut-Lung Lee é um bom exemplo: não fica claro se o personagem é crossdresser ou uma mulher trans. Mas fica claro uma coisa: você não gostaria de ter essa pessoa como sua inimiga…

Yut-Lung Lee é um bom exemplo: não fica claro se o personagem é crossdresser ou uma mulher trans. Mas fica claro uma coisa: você não gostaria de ter essa pessoa como sua inimiga…

Outra coisa é a inspiração na literatura, não só em Salinger. Todos os capítulos possuem títulos retirados de obras importantes da literatura, e nessa entram F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e outros.

Não fica por aí: o tema da prostituição masculina e a semelhança entre Ash e River Phoenix, por exemplo, remetem ao longa Garotos de Programa (1991) de Gus Van Sant, um clássico queer. A culminação da guerra de gangues no metrô de NY em direção a Coney Island nos lembra Warriors - Os Selvagens da Noite (1979).
Provavelmente deve ter mais filme que inspirou Yoshida e eu não pesquei. Sei que o personagem Max sai do físico de Harrison Ford e Eiji replica o físico de Hironobu Nomura, um aidoru bem fofito.

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Um disquinho

de Hironobu Nomura

E como nada é perfeito, um defeito: a música de abertura. Emocore dos ruins.

Se você gostou desse post, pode gostar também desses outros aqui:
. A mistura do heavy metal com o kawaii
. Hayao Miyazaki nos primórdios, com a história melodramática de uma órfã
. Detetive Pikachu é bom. Eu juro!

Brat Pack parte 3: Molly Ringwald & John Hughes & Anthony Michael Hall

Federico Fellini teve o seu Marcello Matroianni e sua Giulietta Masina. Michelangelo Antonioni tinha a Monica Vitti. Pedro Almodóvar tem seu Antonio Banderas. Jean-Luc Godard contou com Anna Karina.

E o roteirista e diretor John Hughes? Ele teve Molly Ringwald!

Mas antes, importantíssimo dizer: essa é a 3ª parte de uma série de posts que esse blog está fazendo sobre o Brat Pack. Sabe o que é Brat Pack? Não seja por isso, confira:
. O que é e quem são os integrantes do Brat Pack?
. O primeiro filme do Brat Pack (segundo alguns) e os subsequentes, incluindo dois de Francis Ford Coppola!

Leu? Está por dentro de tudo? Então, vamos a ela…

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Existem duas verdades a serem ditas:

1. Molly Ringwald já era algo a ser observado no showbusiness, apesar do trabalho com Hughes realmente ter impulsionado a carreira dela. Só que ele não a "construiu”, como alguns acreditam. Molly já cantava desde os 3 anos de idade (!) na banda de jazz (!!) do seu pai (!!!), o pianista Robert Ringwald. Ou seja, ela já era uma criança sensível às artes, esperta. Aos 6, gravou o disco I Wanna Be Loved By You - Molly Sings. Depois, já em 2013, saiu um álbum de jazz dela chamado Except Sometimes que tem uma versão surpreendentemente boa de Don't You (Forget About Me), sucesso da trilha de Clube dos Cinco do Simple Minds. E acima de tudo era uma menina inteligente, com referências culturais interessantes.

2. A dupla era um trio: Gatinhas e Gatões (1984) também contava com outro ator superimportante nesses primeiros filmes de Hughes: Anthony Michael Hall. Ele era o nerd zoado por excelência, Ringwald era a American Sweetheart, e Hughes era o cérebro por trás de tudo isso. Michael Hall fez Férias Frustradas (1983) antes, que tinha roteiro de Hughes - por isso foi chamado para o papel do geek no longa seguinte. Fala-se que quem concorreu com ele por esse papel foi… Jim Carrey. Exótico, né? Ao contrário de muitas interpretações de Jim Carrey, Michael Hall fazia um nerd diferente. Ele tinha mais densidade.

E o galã de Gatinhas? Michael Schoeffling interpretou Jake, a paixonite da personagem Samantha (Ringwald), e para mim ele é uma versão meio genérica do Matt Dillon, tô viajando?

Jake (Michael Schoeffling) em Gatinhas e Gatões: essa sobrancelha reta, esse ar de quase bravo… Dillon, mas reductive

Jake (Michael Schoeffling) em Gatinhas e Gatões: essa sobrancelha reta, esse ar de quase bravo… Dillon, mas reductive

Michael fez mais algumas coisas em Hollywood (como Minha Mãe É uma Sereia, de 1990), só que zarpou de Hollywood depois de Mergulho em uma Paixão (1991) e nunca mais voltou. Mistérios. Revoltou com a fama. Desencantou. Sei lá eu. Na época de Gatinhas, ele já namorava Valerie Robinson, com quem casaria.

Voltemos ao filme, que tem várias questões muito problemáticas. Ele é embebido em racismo contra asiáticos na figura de Long Duk Dong (Gedde Watanabe, que na verdade nasceu em Utah e sabia inglês muito bem; só que fingiu falar com sotaque durante todo o período de testes para o papel, imitando um amigo coreano). Traz muito sexismo na forma da calcinha da personagem de Samantha que vai parar nas mãos de Farmer Ted (Michael Hall), e depois a namorada de Jake (a personagem Caroline interpretada por Haviland Morris, completamente bêbada numa festa) é trocada por essa mesma calcinha. Fica implícito, aliás, que houve estupro da parte de Ted com Caroline! É uma sucessão de elementos infames. Só que ao mesmo tempo é o começo do toque Hughes no cinema: adolescentes tratados como gente normal, complexa, com seus defeitos e qualidades, e não caricaturas histéricas e monotemáticas, não uma visão do adulto sobre o adolescente. É complicado assistir ao filme hoje e não se incomodar com o fato de Caroline ter sido estuprada. Também é complicado ter simpatia pelo longa mesmo com tudo isso inserido (e banalizado) nele.
Um artigo publicado na New Yorker da própria Ringwald coloca essas obras de Hughes (Gatinhas e Gatões e também O Clube dos Cinco) em perspectiva, tendo em vista o movimento #MeToo. Vale ler: além de atriz e cantora, Molly é uma bela escritora. Já lançou livros, aliás.

As pessoas realmente não ligavam para spoilers nessa época: quantas vezes essa cena final foi reproduzida?!

As pessoas realmente não ligavam para spoilers nessa época: quantas vezes essa cena final foi reproduzida?!

Watanabe garante que existiu uma cena que foi cortada da dança em que Dong sobe ao palco e faz um rap sobre como ele se sente sobre a América. Ele diz que, se a cena tivesse sido mantida por Hughes, as pessoas teriam sentimentos diferentes a respeito do personagem cheio de estereótipos.

Long Duk Dong virou símbolo de racismo contra asiáticos

Long Duk Dong virou símbolo de racismo contra asiáticos

Existe essa ideia de que Hughes era muito sensível apesar de pop e por isso seus filmes fizeram tanto sucesso. Sua mulher Nancy Hughes, por exemplo, costumava dizer que, quando ele foi conhecer o futuro sogro com apenas 17 anos, o homem perguntou o que ele pretendia fazer para o resto da vida e Hughes respondeu: “Eu quero ser poeta". Mas essas problemáticas são uma constante nas suas obras "bratpackianas".

À parte os mil problemas: pelo que sabemos, existe uma fã de Gatinhas e Gatões na família real inglesa.
Sim. É isso mesmo que você leu.

Na sequência, Meghan Markle em abril de 2019, grávida; a camiseta que ela estava usando; e a cena clássica de Jake em frente ao carro vermelho, na porta da casa de Samantha. Óun. Ela gosta de uma rom-com!

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Dizem que Hughes pegou uma das imagens do casting de uma produtora e foi escrevendo a história de Gatinhas e Gatões olhando para ela. Era o rosto da Molly Ringwald. Quando chegou a hora de fazer o casting, ele quis que Molly realmente fosse a personagem principal. Em contrapartida, também dizem que Ally Sheedy quase ganhou esse papel. As duas fariam parte do filme seguinte do diretor, Clube dos Cinco.

Samantha ganhou altos toques pessoais de Molly. O chapéu? Ideia dela que virou moda depois do longa ser lançado. O quarto de Samantha, na verdade um cenário montado dentro de uma escola, também ganhou vários objetos que vieram da casa de Molly.

Passando o chapéu!

Passando o chapéu!

Queria só voltar mais um pouquinho antes de continuar.
Para quem não sabe, Hughes foi funcionário da National Lampoon, publicação de humor americana que existiu entre 1970 e 1998, antes de se dedicar inteiramente ao cinema. E sim, existe um ponto de ligação entre os filmes sobre os quais falei no post anterior e Hughes. A ponte é a produtora Michelle Manning.

Manning já foi presidente de produção da Paramount. Mas bem antes, logo após a faculdade, ela começou sua carreira trabalhando na equipe da Zoetrope Productions de Francis Ford Coppola como supervisora de produção de, adivinha, Vidas Sem Rumo (1983) e O Selvagem da Motocicleta (1983). Que tal? Depois de estar nesse time, ela tentou um emprego na nova produtora que Ned Tanen, após sair da Universal, abriu: a Channel Productions. E foi aí que lembrou de uma conversa que ouviu sobre um roteiro que o povo da Warner não queria aceitar porque o roteirista exigiu que também dirigiria, e ele nunca havia dirigido antes… Era Gatinhas e Gatões (1983). Hughes já havia escrito Férias Frustadas (1983) com a turma do National Lampoon e Mr. Mom: Dona de Casa Por Acaso (1983), mas ambos só entrariam em cartaz depois da produção de Gatinhas já estar engatilhada e em filmagem. Tanen, por sua vez, era famoso por dar uma chance para diretores iniciantes - foi ele quem deu luz verde para Picardias Estudantis (1982) na Universal, da diretora Amy Heckerling e roteiro do então jovem Cameron Crowe. Muita gente aponta Picardias Estudantis como outro predecessor de Hughes.

Mas chega de business: queremos saber mais dessa turminha, né?
No começo, Ringwald e Michael Hall não se davam muito bem. Hughes teve a ideia de levá-los para uma loja de disco para ver se rolava uma conexão: ambos gostavam de música, assim como o próprio Hughes.
Rolou. Tanto que, depois de Gatinhas e Gatões, o casal chegou a dar uma namoradinha! A gente vai falar mais disso no post seguinte.

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Unidos pela música

Hughes também era um music geek

Ah, e quase esqueci: outro ator importante que aparece em Gatinhas é John Cusack. Anteriormente ele já tinha pintado em Uma Questão de Classe (1983). Seria um dos satélites ao redor do Brat Pack durante esse tempo, e só chamaria mesmo a atenção em um filme tardio dessa leva, o Digam o Que Quiserem (1989), estreia na direção do "herdeiro de Hughes”: o mesmo Crowe do roteiro de Picardias Estudantis.

Michael Hall com John Cusack e Darren Harris em cena de Gatinhas. Harris sumiu depois de mais dois filmes de adolescente

Michael Hall com John Cusack e Darren Harris em cena de Gatinhas. Harris sumiu depois de mais dois filmes de adolescente

E a gente vai pular Clube dos Cinco aqui nesse post porque ele vai ganhar um post só dele, tá?

Então <insira aqui o Clube dos Cinco>.

Portanto chegamos em Mulher Nota 1000 (1985). O filme dirigido e escrito por Hughes é o mais sexista de todos desse núcleo principal da filmografia. Tem gente como a Susannah Gora, autora do livro You Couldn't Ignore Me If You Tried, que o exclui do pacote Brat Pack.
Como acho que ela o faz por mero gosto pessoal, sinto que toda a problemática de Mulher Nota 1000 faz parte da época e do trabalho de John Hughes e deve, sim, ser incluída na filmografia. Portanto… ei-la!

Lisa (Kelly LeBrock), a Mulher Nota 1000 do título!

Lisa (Kelly LeBrock), a Mulher Nota 1000 do título!

Uma premissa tonta: dois nerds com hormônios à flor da pele produzem uma mulher no computador, meio que em pegada Frankenstein mas usando uma boneca. Dá certo (???) e a mulher é o furacão Lisa (Kelly LeBrock). Os nerds, por sua vez, são Gary (Michael Hall) e Wyatt (Ilan Mitchell-Smith). O plot twist: por mais que Lisa tenha sido criada por eles e diga claramente que está ali para servi-los, ela não tem uma postura exatamente servil. Está mais para uma pessoa com boas ideias de diversão, que vai ajudá-los em seus próprios termos a se socializarem melhor. Ou seja, mais uma desculpa de Hughes para falar sobre a "hierarquia” do Ensino Médio, e de como ele gostaria de quebrar esses paradigmas.
Também fazem parte do elenco o Homem de Ferro Robert Downey Jr e Robert Rusler, que em seguida apareceria em A Hora do Pesadelo 2. Mitchell-Smith virou professor universitário.

Robert Rusler, Anthony Michael Hall, Robert Downey Jr e Bill Paxton, todos do elenco de Mulher Nota 1000

Robert Rusler, Anthony Michael Hall, Robert Downey Jr e Bill Paxton, todos do elenco de Mulher Nota 1000

Os esterótipos chovem. LeBrock é a encarnação do mulherão: boca carnuda, magra, arrojada. Em uma das cenas, no banheiro durante a festa, o que resta para os meninos nerds são duas meninas gordas e risonhas. Está posta a distinção do que é legal e do que não é esteticamente falando - Hughes fica claramente menos sensível nesse roteiro, mais adolescente cheio de hormônio, apesar das boas intenções de ir além das aparências na moral da história. Mas quero me atentar a outros dois estereótipos que podem passar despercebidos aos olhos de um jovem branco hétero, o público principal do filme.

Primeiro: o que significa exatamente a cena do bar? Eles chegam lá em roupa de gala, Lisa de vestido de lamê pink, e o local não é só proibido para menores - sabe quando o proibido namora o divertido? A ausência dos negros em geral na filmografia de Hughes demonstra que a cena do bar, com muitos, quer deixar bem claro e bem distinto que existe uma diferença entre ambientes. Esse, frequentado por negros (e um estrangeiro branco, o estereótipo do italo-americano que também é ligado a uma camada social mais baixa da sociedade norteamericana, interpretado pelo ator-fetiche de Hughes John Kapelos), significa marginalidade, perigo, proibido. E a produção está tão segura disso que nem capricha no resto da ambientação: parece um bar bem normalzão!
Gary fica bêbado e começa a falar de um jeito que emula o jeito que os personagens negros ali falam.
Tudo errado.

Lisa e Gary no bar

Lisa e Gary no bar

A outra cena é rápida e simples: Lisa está no shopping e chama a atenção dos boys Ian (Downey Jr) e Max (Rusler). Eles correm atrás dela. No caminho para a saída, ela passa por uma fila de caras que ficam babando. Caras? Olhe outra vez.

Essa última é a atriz Renee Props. Ele nunca chegou a fazer um papel de grande destaque. Mas esse é de ficar gravado na memória! Estereotipado sim, mas inserir uma mulher ali, sem contexto anterior nem posterior, é quase progressista, não?

Essa última é a atriz Renee Props. Ele nunca chegou a fazer um papel de grande destaque. Mas esse é de ficar gravado na memória! Estereotipado sim, mas inserir uma mulher ali, sem contexto anterior nem posterior, é quase progressista, não?

Uma coisa precisa ficar clara: Hughes era republicano.
Isso explica bastante coisa…

Vamos para A Garota de Rosa-Shocking (1986), que é lindo mas é o começo do fim.
A ideia de Hughes era que Michael Hall e Ringwald participassem de todos seus filmes seguintes: esse, Curtindo a Vida Adoidado (1986) e Alguém Muito Especial (1987). Acontece que Michael Hall pulou do barco em Garota
Quais seriam os papéis dele? Ele seria o Duckie? O próprio Ferris Bueller? O sensível artsy Keith Nelson?
Michael Hall quis abrir seus horizontes, mas é provável que ele mostraria a sua versatilidade se tivesse seguido com Hughes também. Uma prova é que o Duckie de Jon Cryer em A Garota de Rosa-Shocking é simplesmente fantástico e totalmente diferente do que Michael Hall cometeu antes. No mínimo ele se diverte mais com a moda e não é geek, apesar de fazer parte dos zoados da escola! E se o papel que Hughes tinha em mente para ele era o de Blane que ficou com Andrew McCarthy, a coisa vai além: Blane é o rico que faz parte da turma dos populares e que sente a pressão deles para assumir a menina pobre Andie (Ringwald) como namorada. McCarthy tem um desempenho mediano (você fica com bastante raiva dele e mesmo assim, nos testes com espectadores, o final no qual os dois seguem separados foi rejeitado - por isso eles acabam voltando). Michael Hall provavelmente seria capaz de dar um conflito mais profundo para Blane. E talvez os dois ficarem juntos no final seria mais plausível. Será?

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É muito simbólico o fato desse primeiro filme sem Michael Hall ser escrito e produzido por Hughes, mas a direção ter ficado a cargo de outro cara. Howard Deutch era um iniciante que nunca havia dirigido um longa antes e viraria uma espécie de herdeiro de Hughes tanto nesses filmes teen quanto nas comédias "para a família” depois. Ele fez, por exemplo, Acertando as Contas com Papai (1994) e Dois Velhos Mais Rabugentos (1995).

Mas, claro, Hughes controlava tudo. Aqui, ele com Deutch, Cryer e Ringwald no set de A Garota de Rosa Shocking

Mas, claro, Hughes controlava tudo. Aqui, ele com Deutch, Cryer e Ringwald no set de A Garota de Rosa Shocking

Mas eu quero mesmo é falar do guarda-roupa de Andie, a personagem de Ringwald, que nesse filme chega no auge!

Gucci would kill for one of those!
Precursora do rosa millennial? Rainha do mix and match de brechó? Agradeço à figurinista Marilyn Vance por tudo isso.
Vance, aliás, é uma das mais profícuas colaboradoras de Hughes. Além desse, que considero sua maior obra ao lado de Uma Linda Mulher (1990), ela também assina o figurino de Mulher Nota 1000 (emblemático, uma das calcinhas com cropped mais famosas de Hollywood), Clube dos Cinco (a gente fala mais daqui a pouco), Curtindo a Vida Adoidado (retrato de uma era), Quem Vê Cara Não Vê Coração (outro retrato de uma outra era). Palmas.
O estilo de Andie é emblemático porque virou o estilo Ringwald. É nele que se completa o ciclo de Samantha de Gatinhas e Gatões - a menina não precisa ser popular, ter roupas caras, ser perfeita. Ela é legal justamente pela personalidade, que se reflete no jeito dela se vestir. Andie é diferente das outras, e a gente a valoriza exatamente por isso. Inclusive Blane, o riquinho que se apaixona mas não tem culhão de assumi-la.
E vem daí o comparsa de Andie, Duckie, que na verdade é apaixonado por ela: Cryer simplesmente arrasa. E o personagem é tão estiloso quanto!

Falei bastante de Duckie e Garota de Rosa Shocking nesse post aqui

Falei bastante de Duckie e Garota de Rosa Shocking nesse post aqui

Existe uma teoria que é defendida pela própria Ringwald de que Duckie na verdade é gay.
Cryer diz que não teria problema com isso, mas que não procede: Duckie, assim como ele, é um… hétero afeminado!
Molly teria ficado irritada com Cryer porque queria que Downey Jr fizesse o papel. E aí começou a dizer essa história dele ser gay (mesmo que o primeiro final, não aprovado nos testes de audiência, fosse ela e ele juntos!) só para provocá-lo. Eu, hein!

Finalmente chegamos na cena final, e no vestido em si - que é pink e não rosa shocking.
Muita gente odeia o vestido com todas as forças. Acho que 1. ele funciona na trama 2. é até meio bom? Não sei se é porque eu gosto muito da personagem, mas juro que ele me convence! Consta na lenda que Molly ODIOU e queria vestir um tomara-que-caia com saia ampla. Mas dessa vez Vance conseguiu manter a escolha dela.

Dá para imaginar que é um look que Andie fez a partir de dois outros, não dá? Rainha da customização!

Dá para imaginar que é um look que Andie fez a partir de dois outros, não dá? Rainha da customização!

Nessa época Molly já era a melhor cover girl dos anos 1980. Olha isso:

Depois de Garota de Rosa-Shocking, Molly e John seguiram caminhos separados. Os filmes seguintes dele seriam Curtindo a Vida Adoidado e Alguém Muito Especial, ambos com um caráter meio esquisito de fazer parte dos filmes do Brat Pack sem ter pessoas do núcleo central do Brat Pack no elenco.

<Curtindo a Vida Adoidado também vai ter um post só dele, então imagina que ele está aqui nessa parteeee kkkkk>

Molly foi convidada para Alguém Muito Especial (1987) mas achou que seria redundante participar de algo tão parecido com Garota de Rosa-Shocking. A história realmente é similar, só que o "pobre estiloso” dessa vez é um rapaz, Keith Nelson (Eric Stoltz, um outro ruivo! Que fetiche, né?). Keith não é estiloso e sim sensível, gosta de arte, de pintar. E sim, é pobre e trabalha numa mecânica. Ele se apaixona por Amanda Jones (Lea Thompson), que também é meio pobre mas, por causa do seu namoro com o rico Hardy Jenns (Craig Sheffer, sobre o qual a gente falou no filme A Força da Inocência), ganha "passe livre” entre os populares da escola. A sua melhor amiga, a Duckie da vez, é Watts (Mary Stuart Masterson), que é, sim, estilosa, entre outras coisas por ter o cabelo metade de cada cor! E, por ser tomboy tocadora de bateria, o povo acha que ela é lésbica (tipo acharem que o Duckie é gay!). Acontece que ela é apaixonada pelo amigo Keith.

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O elenco que ficou: Thompson, Stoltz e Masterson

Dirigidos por Deutch com produção e roteiro de Hughes

A primeira versão de Alguém Muito Especial não foi aprovada pelos estúdios. Nela, era Watts quem chamava Keith! Sim, era um personagem não-binário (ou mesmo trans, não fica claro porque na época essa discussão não estava no mainstream), e mais do que tomboy - agia como um rapaz. Na mudança, o sobrenome de Charlie Watts, baterista do Rolling Stones, virou o nome dela, mais neutro. E Keith virou o personagem principal. Nesse meio tempo, Deutch foi dispensado e chamaram Martha Coolidge para dirigir. Depois ela foi demitida e ele voltou!

Thompson, por sua vez, tinha dispensado o papel de Amanda no começo. Com toda a reviravolta e uma nova versão do roteiro, ela topou. Topou tanto que depois casou com Deutch na vida real! E estão juntos até hoje!!! Thompson estava noiva de Dennis Quaid, mas dá para ver o quanto Deutch estava apaixonado por ela pelos olhos do personagem Keith.

Amanda &amp; Keith

Amanda & Keith

Mas a estrela, o grande personagem aqui, é Watts. Ela é o último grande personagem adolescente de Hughes. E Masterson é uma ótima atriz, embora sem o magnetismo gigantesco de Ringwald (é até sacanagem comparar, né? Uma das atrizes mais carismáticas daquela década!).
Fun fact: Masterson dirigiu Doces Encontros (2007), longa com Kristen Stewart. E é uma das personagens principais de Tomates Verdes Fritos (1991), um classicão.

O careca (Elias Koteas) mais Watts (Masterson) com suas luvinhas cheias de franja, pouco práticas para tocar bateria mas muito estilosas, e Keith (Stoltz)

O careca (Elias Koteas) mais Watts (Masterson) com suas luvinhas cheias de franja, pouco práticas para tocar bateria mas muito estilosas, e Keith (Stoltz)

Querendo superar a aura de adolescente namoradinha da América, Molly passa a procurar outro tipo de papel. Mas parece, no fundo, que ficou um pouco perdida. Dizem que recusou dois papéis que viriam a ser grandes veículos para duas colegas: o de Julia Roberts em Uma Linda Mulher (1990) e o da colega de Brat Pack Demi Moore em Ghost (1990). Putz. Acabou em O Casamento de Betsy (1990) com um look… bem…

Sim, é um vestido de casamento. Seus personagens realmente gostam de brincar com a moda… E essa da esquerda é Ally Sheedy, outra do Brat Pack!

Sim, é um vestido de casamento. Seus personagens realmente gostam de brincar com a moda… E essa da esquerda é Ally Sheedy, outra do Brat Pack!

Hughes partiu para outra depois de Alguém Muito Especial e nunca voltaria a fazer filmes para o público adolescente. Agora, seu foco era criança… E em especial, uma outra criança que virou sua nova musa no lugar de Ringwald. Ele mesmo.

Macaulay Culkin em Esqueceram de Mim (1990) com direção de Chris Columbus e roteiro e produção de John Hughes

Macaulay Culkin em Esqueceram de Mim (1990) com direção de Chris Columbus e roteiro e produção de John Hughes

Para acabar esse post num clima mais profundo, trago à baila a conversa que a gente queria ter gravada: entre John Hughes e… Kate Bush.

O filme mais conectado com a mulher de Hughes, Nancy, é Ela Vai Ter um Bebê (1988). Diz um dos filhos de Hughes que o próprio teve uma longa conversa com Bush sobre Nancy, e aí usou a música This Woman's Work numa sequência em que o personagem de Kevin Bacon espera a mulher num trabalho de parto difícil. A letra diz:

Give me these moments back

Give them back to me

Give me that little kiss

Give me your hand.

Sim. A música foi feita especialmente para o filme, e posteriormente lançada no álbum The Sensual World (1989).